sábado, 9 de julho de 2016

Eu sou voluntária numa associação, logo, sou polícia, veterinária, advogada, super-mulher, Santa Casa da Misericórdia e tudo e tudo e tudo

Ser voluntário de uma associação da causa animal, para além de ser uma experiência enriquecedora, uma oportunidade de crescimento pessoal, um desafio e um privilégio, é também colocar em si próprio um alvo gigantesco que é visto inclusive do espaço, qual muralha da China.

A partir do momento em que nos tornamos voluntários, não só o universo pressente, e nos atira esquina sim esquina não, com um animal atropelado, uma ninhada abandonada, um gato com um olho fora da cavidade ocular, cães dentro de um contentor e por aí fora, qual roleta russa, com a diferença de que sai sempre bala, como também os nossos familiares, amigos, conhecidos e mesmo estranhos que conseguiram o nosso contacto através de um conhecido, amigo, ou familiar nosso (não adoramos isso?), ou até mesmo de outro estranho que já tinha conseguido o nosso contacto previamente, passam a ter-nos em speed dial para qualquer eventualidade, que pode ir desde "vi um gato doente, quase a morrer ali na rua x, o que é que podes fazer?", "vi uma gaivota ferida, o que é que podes fazer?",  "ali naquela rua há muitos gatos, o que é que podes fazer?", "o meu gato anda a coçar-se muito, o que é?" até "anda um cão atrás de mim, o que faço?", ou "vi um cão ao passar na auto-estrada, podes ir buscá-lo?".

Se és voluntário, és como o super-homem, ou o batman, ou qualquer super-herói, não porque sejas imensamente apreciado e façam action figures com a tua fronha, mas porque de cada vez que há um desastre, toca um alarme qualquer invisível e tu tens de largar tudo e ir a correr salvar o dia. Se fores, com sorte, ainda levas uma palmada nas costas, uma bolachinha, ou uma beijoca. Se não fores, levas com um atestado de inútil, insensível e porque só ajudas animais quando te convém, só queres é parecer herói, afinal de contas és voluntário e fazes o quê?

Às vezes fico a pensar, se eu não fosse voluntária, que solução é que estas pessoas procurariam, quando confrontadas com estas situações? Quem seria a sua muleta? Antes de mim, como é que elas viviam?

Porque sou voluntária, não posso ter espaço próprio, tenho de ser toda eu uma ferramenta para o outro. Tenho de largar trabalho, família, amigos, lazer, quando toca o tal alarme. Se não o faço, sou uma pessoa terrível, que é capaz de ter vida própria, quando há tantos animais a sofrer. Mas curiosamente, este tipo de exigência e comentário, esta indignação da nossa falta de sacrifício, vem quase sempre de pessoas que não fazem voluntariado, que não trabalham activa e diariamente pelo bem-estar animal. São pessoas que têm vida própria, espaço próprio, família, trabalho, amigos, lazer, férias (ah! férias!), enfim, cidadãos e cidadãs comuns, ou os chamados activistas da internet, aquelas pessoas que partilham 50 apelos de animais para adopção/perdidos/feridos, que fazem apelos em caps lock, e que insultam Deus e o mundo quando não recebem resposta, mas que não estão elas próprias dispostas a acolher os animais da rua (excepto obviamente se tivessem muito dinheiro,  "ai se me saísse o euro-milhões", ou uma casa muito grande, " ai se eu tivesse um pátio ou um jardim", ou então um santuário, ui os santuários, "fazia um santuário e resgatava os animaizinhos todos". Se estas pessoas fossem todas ricas não havia um único animal na rua, era uma utopia só). Para elas, o facto de partilharem 50 apelos, ou até fazerem donativos, dá-lhes todo o direito de mandarem e desmandarem em voluntários, associações, abrigos, canis, quiçá o mundo!

Como é que é possível um voluntário não sair de casa às tantas da noite para ir buscar o animal muito ferido visto por aquela alma caridosa, que prontamente foi para casa sentar-se ao computador dizer que viu e exigir acção? Mas afinal os voluntários servem para quê? Dormir? Mas como é que conseguem dormir, comer, ler, ouvir música, ver um filme, sair com os amigos, quando há animais a sofrer a todas as horas? Mas será que não sabem que têm de estar 24h por dia, 7 dias por semana e 365 (ou 66) dias por ano disponíveis, para que as outras pessoas possam fazer essas coisas de gente normal? Ninguém lhes mostrou as letras pequeninas do contrato invisível assinado a sangue aquando a sua entrada no mundo do voluntariado?

Se és voluntário, tens obrigação de salvar todos os animais que te despejarem à porta (esta porta pode ser física ou virtual, na maior parte das vezes é a segunda). Tens de pegar na proverbial batata, para que a outra pessoa não queime as mãozinhas, afinal de contas tu tens calo, não sentes o quente.

Se és voluntário, tens de pegar na lei e fazer dela o teu instrumento de justiça, tens de obrigar as pessoas a tratarem bem os seus animais, tens de retirar o cão daquele dono que o prende na varanda, tens de exigir que ele o passeie, que o trate bem, tens de ir lá bater-lhe à porta porque o vizinho que não quer dar a cara vê o pobre do cão preso dia e noite, à chuva, ao frio e ao sol e isso incomoda-o, coitado.

Se és voluntário, tens de conhecer intimamente a anatomia animal, tens de saber todas as doenças, todos os vírus, todos os tratamentos, todos os medicamentos e todos os produtos, conhecer todos os veterinários e as suas tabelas de preços, para que possas prontamente informar as pessoas que não sabem estas coisas.

Se és voluntário, tens de saber a lei até à última vírgula, para que possas informar as pessoas de toda e qualquer situação, possível ou imaginária, apresentar-lhes todos os cenários possíveis, todas as loopholes, todos os caminhos que podem seguir para que elas não tenham de perder sequer um segundo do seu precioso tempo a pesquisar a informação que querem.

Se és voluntário, tens de ter poderes sobre-humanos, tens de sobreviver sem beber, sem comer, sem dormir, tens de conhecer apenas uma palavra: abnegação (definição: renúncia espontânea do interesse, da vontade, da conveniência própria).

Se és voluntário, tens de ter um espaço infinito para receber todos os animais que cruzam o caminho das pessoas, metes cães em gavetas, gatos em caixas, andas com eles nos bolsos, fazes malabarismo, tu lá sabes, mas não podes nunca dizer não, porque isso quer dizer automaticamente que és uma pessoa horrível.

Ser voluntário é ser muitas vezes um espelho cruel, pois aquilo que as pessoas vêem não somos nós, mas o seu reflexo, e serem confrontadas com a sua cobardia, com a sua apatia, com a sua inércia, é um choque demasiado grande, pelo que entram em negação, e vêem apenas aquilo que querem ver, a pessoa à sua frente, física ou virtualmente, que tem de fazer aquilo que elas não têm coragem ou vontade de fazer. Ajudar um animal dá trabalho, é muitas vezes esgotante, pesaroso, o futuro é incerto, pelo que a opção mais fácil é deixar que outra pessoa resolva.

Ser voluntário é ser também saco de boxe por vezes, em que cada soco virtual é terapêutico para a pessoa do outro lado. Se despejar em ti todas as suas frustrações, fica mais vazia, mais leve, dorme melhor. Afinal de contas o ecrã está ali a proteger ambas as partes, insultos são só palavras, balas de borracha.

Generalizações são isso mesmo, e mesmo existindo uma base que dá razão à generalização, esta nunca reflecte a realidade em pleno. Aquilo que descrevo acontece diariamente, no mundo inteiro e não é algo raro ou uma generalização que não tem uma base sólida. Mas não é a realidade completa, não é a história toda. Há muitas pessoas que respeitam e apreciam o trabalho feito por voluntários, que amparam em vez de atirar ao chão, que apoiam com atitudes e palavras, que compreendem que tal como todos os outros, estamos limitados pela nossa humanidade, ao mesmo tempo que a mesma não tem limites. A todas essas pessoas, obrigada.

Ser voluntário é também uma alegria imensa. É um privilégio que não trocaria por nada. É ser parte de algo maior do que apenas a pessoa que somos. É ver também o melhor do ser humano, a par com o pior.

Há dois anos que sou voluntária, e sou a primeira a exigir demais de mim, a pôr a minha vida própria de lado, a sacrificar família, amigos, tempo de lazer, descanso, e não sou exemplo para ninguém. Não é algo para ser admirado. Sempre vivi obsessivamente e esse excesso de trabalho é apenas um sintoma da minha personalidade demasiado intensa. Todos os dias tento lembrar-me de que não sou infinita, não sou imensa, omnipresente ou omnipotente, que se não cuidar de mim, não tenho condições para cuidar da causa a que me dedico. Aos poucos vou interiorizando isso e nuns dias consigo superar essa tendência, noutros nem tanto. Mas ainda que eu exija de mim, isso não dá a mais ninguém o direito de me exigir o que quer que seja.

O trabalho a que me dedico na associação onde sou voluntária, é do mais importante que já fiz na minha vida. Faço-o com a maior seriedade, convicção, e orgulho. E são mais os dias em que me sinto feliz, do que os que me sinto frustrada ou triste.

Não sou polícia, nem veterinária, nem advogada, nem super-mulher, e muito menos Santa Casa da Misericórdia. Sou apenas voluntária.

[Exempla, magis quam verba, movent]