terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Eu capturo gatos, logo, sou uma crazy cat lady

Para quem não está por dentro do método CED (Capturar-Esterilizar-Devolver), ver um grupo de pessoas na rua, com armadilhas, transportadoras, toalhas, garrafas de coca-cola de 1L, corda e latas de atum, que se sentam em silêncio, escondidas, à espera que os gatos apareçam, por vezes a chover e elas de óculos de sol, é uma experiência no mínimo desconcertante. As expressões faciais variam entre simples surpresa, confusão, incredulidade, choque, confusão, e até indignação.
Mas então o que é isto de andar a capturar gatos com armadilhas? O que é o CED?
O CED é um método humano e eficaz de controlo populacional de animais errantes. O mais humano e o mais eficaz.
É usado maioritariamente em colónias de gatos, mas também em matilhas (embora este assunto tenha outras ramificações, fica para a próxima).
Porque é que se faz o CED? Qual o seu propósito?

Que pessoas são estas que andam a apanhar gatos da rua e a estragar os animais esterilizando-os e ainda por cima a mutilá-los cortando-lhes as orelhas? Estes disparates são apenas um pequeno exemplo do que ouvimos ao fazer este trabalho. Outro disparate muito ouvido é de que os animais foram feitos para estar na rua, foram feitos para procriar e andar à sua vontade e nós não temos o direito de andar a brincar de Deus.

Quem faz parte da causa animal, seja trabalhando com resgate e adopção de animais abandonados ou trabalhando com esterilização de animais errantes, sabe o quanto é importante a esterilização dos animais de companhia.
Há demasiados animais de companhia, ponto. Não há pessoas suficientes para adoptar todos os animais abandonados, em abrigos, nos canis. Há abandonos constantes de animais. Depois ainda há quem compre animais. É um ciclo interminável.

Para além disto, os animais que vemos na rua (e os que não vemos) não são todos animais abandonados. A maior parte deles são animais que já nasceram nas ruas, fruto do abandono de algum animal é certo, mas muitos são fruto do abandono de um animal há já muito tempo. São os chamados animais silvestres, cães ou gatos.

Um gato silvestre é um gato fisica e geneticamente idêntico ao nosso gato de casa, é na mesma um animal doméstico, é na mesma um felis silvestris catus, não confundamos silvestre com selvagem (pode parecer básico, mas acreditem que também acontece a algumas pessoas). Também não confundamos silvestre com bravo, um gato silvestre não é um animal possuído que nos vai atacar se lhe tentarmos fazer uma festinha ao passar por ele na rua e deixar-nos a esvair em sangue. Não, ele vai é fugir. Um gato silvestre não é automaticamente um gato agressivo, não é o seu temperamento que define se ele é silvestre ou não.

Qual é então a diferença entre um gato silvestre e um gato dócil? A diferença essencial entre um gato silvestre e um gato dócil (e é aqui que se encontra o pepino senhoras e senhores, é aqui que o parto custa a acontecer e às vezes tem de ser a ferros) é que um gato silvestre não aprecia, não aceita e não procura contacto humano. É isto gente. Os animais silvestres não querem nada connosco. São animais que nunca foram socializados nem manuseados por pessoas e que logicamente não estão habituados ao contacto humano. Continuam a depender de nós, mas não permitem que nos aproximemos.

Os animais que vemos na rua podem ser dóceis, podem ser assilvestrados, podem ser silvestres, enfim, não é tudo a preto e branco, há animais que foram abandonados e com o tempo ficaram assilvestrados, mas que com alguma paciência poderiam voltar a apreciar contacto humano, há animais silvestres que não querem nada com ninguém, mas que até se deixam tocar pelos seus cuidadores (uma espécie à parte os cuidadores, falarei em maior profundidade noutra altura), há animais que até se deixam tocar, mas se os metemos numa casa são infelizes ou até miam incessantemente até os devolvermos ao seu meio, enfim, há algumas zonas cinzentas que temos de saber identificar.
Mas há algo que é completamente preto e branco para quem se dedica ao CED de corpo e alma e para quem nele acredita:

O lugar dos animais dóceis é em casa, o lugar dos animais silvestres é na rua.

A violência de que um animal dócil é alvo ao ser abandonado, ao ser colocado na rua, sujeito aos perigos, aos outros animais, ao frio, à chuva, sem contacto humano, sem conforto, é exactamente equiparável à violência que atinge um animal silvestre ao ser colocado numa casa, fechado, sem a sua liberdade, forçado a um contacto humano que não aprecia e que o deixa em pânico.

Isto senhoras e senhores, é absolutamente preto e branco e é o tal parto difícil que vemos diariamente, mesmo dentro da causa animal, pois nem todos os que cá andamos temos o bem-estar do animal em mente, ou mesmo que tenhamos, nem todos sabemos exactamente em que consiste esse bem-estar, não só físico, como psicológico.

Agora que sabemos o que é um gato silvestre (vou deixar os cães de fora até uma próxima), porque é que fazemos este trabalho? Porquê capturá-los, esterilizá-los, cortar-lhes a ponta da orelha esquerda (há espertos que fazem do lado direito mas não vamos ligar a esses) e devolvê-los? Devolvê-los! Sim, porque a par das pessoas que dizem que os animais pertencem todos à rua e que deveríamos era estar todos quietos e deixá-los andar, há também as pessoas que acham que os animaizinhos coitadinhos, têm de sair todos da rua, irem todos para abrigos, refúgios utópicos e paradisíacos, para casas nem que seja tudo ao molhe e fé em deus, sem condições e todos em stress constante por serem animais por natureza solitários e territoriais e serem obrigados a dividir o espaço, fechado, com dezenas de outros.

Nós esterilizamos animais, porque esterilizar é proteger. Esterilizamos animais porque vemos diariamente as ninhadas a morrer, os animais a sofrerem nas ruas, as gatas com infecções de útero e tumores mamários, vemos os atropelamentos, os envenenamentos, vemos a crueldade, vemos os ferimentos, as mortes atrozes.

Acima de tudo, esterilizamos porque vemos o futuro.

Porque olhamos para uma gata gestante e vemos o futuro. Vemos o futuro daquela gata, das crias dela, das futuras crias das crias dela, das futuras crias das crias das crias dela e sempre assim até ao infinito, porque é isso, é o infinito, é um ciclo interminável de procriação e sofrimento.

E pode parecer contraditório eu dizer "o lugar dos animais silvestres é na rua" e depois mais à frente dizer que esterilizamos para que não sofram na rua. Mas não é. É apenas lógico. O lugar deles é na rua porque já lá estão e já lá nasceram. Não significa que seja o ideal ou que queiramos isso para os animais que ainda não nasceram, não queremos, e por isso esterilizamos.

E agora que já está explicado porque é que estragamos animais, falta explicar porque é que os mutilamos. Porque raios andamos a cortar bocados de orelhas às pobres criaturas.

O corte da ponta da orelha esquerda, é o sinal internacional que identifica um animal esterilizado. Ele é feito sob anestesia quando o animal está na cirurgia e é indolor. Eu não posso afirmar a 100% pois não sou gato e não tenho corte, mas imagino que seja o equivalente a fazermos um furo na orelha, com a vantagem de que o gato está a dormir quando isso acontece, pelo que não sente absolutamente nada.
É o método de identificação mais eficaz e seguro que existe no momento e é essencial para quem trabalha na causa animal saber identificar quais animais já foram esterilizados. É algo que os protege de intervenções desnecessárias (no caso das fêmeas por exemplo, só anestesiando e abrindo de novo é que o veterinário pode efectivamente comprovar que a mesma já está esterilizada) e de mais stress e também algo que os protege de serem capturados por canis, pelo menos nos municípios em que estes respeitam o trabalho de associações, que felizmente, cada vez vão sendo mais.

Eu capturo gatos, logo, tenho consciência do flagelo que é a superpopulação de animais de companhia.

Não andamos a brincar às crazy cat ladies. Este trabalho é para mim o que de mais importante já fiz, irei fazê-lo até ao meu último suspiro, ou até esterilizar os animais errantes de Portugal inteiro, o que acontecer primeiro.

Trago na pele a imagem desta ideia que defendo e não há um segundo sequer em que duvide de que é este o caminho a percorrer para acabar com o sofrimento dos animais que vivem nas ruas.

Esterilizar é proteger.

[Scientia potentia est]

1 comentário: