Sempre gostei de animais. Toda a vida convivi com cães,
gatos e pássaros. Nunca fiz parte da causa animal, nunca me envolvi com nenhuma
associação ou movimento, até 2014. Durante 27 anos fui apenas mais
uma pessoa que gostava de animais, que cuidava dos seus o melhor que sabia, mas
que procurava ou se dedicava a outras coisas na vida (parecem-me agora tal
desperdício esses anos, perdida, sem saber exactamente qual o caminho que
queria seguir, querendo tudo e nada, não me decidindo nunca por um objectivo).
Parece ilógico que alguém que fervorosamente sempre defendeu os animais, se
tivesse mantido afastada de toda e qualquer causa que os envolvesse. Ia fazendo
o que podia no dia-a-dia, os meus gatos foram todos encontrados na rua, cheguei
a encontrar 5 numa caixa, com um ou dois dias de vida, que tive de alimentar a
seringa e posteriormente a biberão. Mas não procurava saber, não procurava
envolver-me, não passava da linha do mínimo. Porquê? Por que motivo não
procurava a satisfação de ajudar animais?
Medo.
(Não é esse o obstáculo mais frequente?)
Medo de quê?
Medo de não conseguir ajudar, medo de enfrentar a realidade,
medo de ter pesadelos, medo de ver um animal na rua a precisar de auxílio e eu
não ter coragem de o ajudar, Medo de ser confrontada com a minha própria
cobardia. Porque uma coisa é fingirmos que não sabemos, longe da vista, longe
do coração. Passarmos uma vida a evitar e a desviarmo-nos de toda e qualquer
situação que peça a nossa acção. Outra coisa é estarmos numa situação que nos
obriga ou a agir, ou a fugir, mas nesse momento já não podemos fingir. Tive
sempre imenso medo de não ser capaz, de não aguentar as atrocidades, eu que
sempre senti demais, tão intensamente, o bom e o mau, que sempre pensei demais,
a todas as horas, o cérebro sem parar. Como é que eu iria conseguir lidar com
tanto sofrimento? Era impossível, seria doloroso demais. E então sempre me
escondi, procurei sempre sentir à distância, pensar à distância, sofrer à
distância, ter pena e sentir pesar, de longe, ao ouvir histórias.
Isso mudou quando fui confrontada com um
animal a precisar de ajuda. E eu, contrariando todos os instintos de
auto-preservação emocional, movi céu e terra para o ajudar. E ajudei-o. E ao
fazer isso incendiei algo em mim, um fogo que não apaga e precisa de ser
alimentado. De repente tudo fez sentido, de repente já não me sentia paralisada
pelo medo, pelo contrário, o medo impelia-me, exigia de mim acção, pois já não
era o medo de fugir, era o medo de continuar a fingir.
Vieram muitos outros animais depois desse primeiro. Depois
de 27 anos à procura não sei bem de quê, encontrei na causa animal uma voz que
acreditava perdida, inexistente até. Esta é uma voz que não fala só de mim, que
não fala só por mim, que é maior, maior do que eu.
Tenho em mim ainda muitos desejos e objectivos, paixões, quero
escrever, quero fotografar, quero dar voz ao meu interior. Mas ainda que não
consiga atingir nenhum desses patamares, sei que encontrei o que
verdadeiramente me move, o que me faz sentir feliz e realizada, é isto que é
suposto eu fazer, que deveria ter feito toda a minha vida e que quero fazer no
tempo que me restar dela. Encontrei a minha vocação, o meu chamamento, a minha
raison d'etre se quiserem. É neste trabalho que eu penso quando me levanto de
manhã e é nele que reflicto quando me deito à noite. Não é especificamente na
associação em que sou voluntária ou exclusivamente no tipo de trabalho que
fazemos, é muito mais do que isso, é tudo. Quero aprender todos os dias mais,
fazer cada vez mais, de forma mais abrangente e interligada. O trabalho a que me
dedico especificamente é sem dúvida o que mais me apaixona, mas é apenas uma
pequena roda na grande engrenagem que é a causa animal, que ao contrário do que
muitas pessoas pensam, não está de todo afastada da causa humana, muito pelo
contrário, são irmãs.
Ainda hoje sinto medo, ele não desapareceu. Continuo com o
mesmo medo de me deparar com uma situação demasiado atroz, de não conseguir
ajudar, de fugir. Mas todos os dias enfrento esse medo e essa situação
hipotética ainda não aconteceu. E sim, vejo casos maus, vejo sofrimento, vejo
atrocidades. Mas vejo também tanta humanidade, tanta esperança, felicidade,
solidariedade. Vale a pena. Vale verdadeiramente a pena.
Já andei no mundo dos blogs e acabei por me esfumar, mas
achei que estava na altura de voltar. Achei que devia partilhar a minha voz e a
minha experiência com quem as quiser. E quem sabe encontrar pessoas que sentem
da mesma forma esta ambiguidade naquilo que fazem, seja na causa animal ou
noutro contexto qualquer.
Todos os dias me recuso a fechar os olhos, por mais que seja
doloroso mantê-los abertos. Depois de ver, já não é possível deixar de ver,
ainda que os olhos cegassem. E vejo coisas horríveis sim. E coisas maravilhosas
também.
Demorei muitos anos a decidir ouvir-me e a encontrar-me, mas
agora não esqueço quem sou.
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