segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

No princípio era o medo

Sempre gostei de animais. Toda a vida convivi com cães, gatos e pássaros. Nunca fiz parte da causa animal, nunca me envolvi com nenhuma associação ou movimento, até 2014. Durante 27 anos fui apenas mais uma pessoa que gostava de animais, que cuidava dos seus o melhor que sabia, mas que procurava ou se dedicava a outras coisas na vida (parecem-me agora tal desperdício esses anos, perdida, sem saber exactamente qual o caminho que queria seguir, querendo tudo e nada, não me decidindo nunca por um objectivo). Parece ilógico que alguém que fervorosamente sempre defendeu os animais, se tivesse mantido afastada de toda e qualquer causa que os envolvesse. Ia fazendo o que podia no dia-a-dia, os meus gatos foram todos encontrados na rua, cheguei a encontrar 5 numa caixa, com um ou dois dias de vida, que tive de alimentar a seringa e posteriormente a biberão. Mas não procurava saber, não procurava envolver-me, não passava da linha do mínimo. Porquê? Por que motivo não procurava a satisfação de ajudar animais?

Medo.
(Não é esse o obstáculo mais frequente?)

Medo de quê?
Medo de não conseguir ajudar, medo de enfrentar a realidade, medo de ter pesadelos, medo de ver um animal na rua a precisar de auxílio e eu não ter coragem de o ajudar, Medo de ser confrontada com a minha própria cobardia. Porque uma coisa é fingirmos que não sabemos, longe da vista, longe do coração. Passarmos uma vida a evitar e a desviarmo-nos de toda e qualquer situação que peça a nossa acção. Outra coisa é estarmos numa situação que nos obriga ou a agir, ou a fugir, mas nesse momento já não podemos fingir. Tive sempre imenso medo de não ser capaz, de não aguentar as atrocidades, eu que sempre senti demais, tão intensamente, o bom e o mau, que sempre pensei demais, a todas as horas, o cérebro sem parar. Como é que eu iria conseguir lidar com tanto sofrimento? Era impossível, seria doloroso demais. E então sempre me escondi, procurei sempre sentir à distância, pensar à distância, sofrer à distância, ter pena e sentir pesar, de longe, ao ouvir histórias.

Isso mudou quando fui confrontada com um animal a precisar de ajuda. E eu, contrariando todos os instintos de auto-preservação emocional, movi céu e terra para o ajudar. E ajudei-o. E ao fazer isso incendiei algo em mim, um fogo que não apaga e precisa de ser alimentado. De repente tudo fez sentido, de repente já não me sentia paralisada pelo medo, pelo contrário, o medo impelia-me, exigia de mim acção, pois já não era o medo de fugir, era o medo de continuar a fingir.
Vieram muitos outros animais depois desse primeiro. Depois de 27 anos à procura não sei bem de quê, encontrei na causa animal uma voz que acreditava perdida, inexistente até. Esta é uma voz que não fala só de mim, que não fala só por mim, que é maior, maior do que eu.

Tenho em mim ainda muitos desejos e objectivos, paixões, quero escrever, quero fotografar, quero dar voz ao meu interior. Mas ainda que não consiga atingir nenhum desses patamares, sei que encontrei o que verdadeiramente me move, o que me faz sentir feliz e realizada, é isto que é suposto eu fazer, que deveria ter feito toda a minha vida e que quero fazer no tempo que me restar dela. Encontrei a minha vocação, o meu chamamento, a minha raison d'etre se quiserem. É neste trabalho que eu penso quando me levanto de manhã e é nele que reflicto quando me deito à noite. Não é especificamente na associação em que sou voluntária ou exclusivamente no tipo de trabalho que fazemos, é muito mais do que isso, é tudo. Quero aprender todos os dias mais, fazer cada vez mais, de forma mais abrangente e interligada. O trabalho a que me dedico especificamente é sem dúvida o que mais me apaixona, mas é apenas uma pequena roda na grande engrenagem que é a causa animal, que ao contrário do que muitas pessoas pensam, não está de todo afastada da causa humana, muito pelo contrário, são irmãs.

Ainda hoje sinto medo, ele não desapareceu. Continuo com o mesmo medo de me deparar com uma situação demasiado atroz, de não conseguir ajudar, de fugir. Mas todos os dias enfrento esse medo e essa situação hipotética ainda não aconteceu. E sim, vejo casos maus, vejo sofrimento, vejo atrocidades. Mas vejo também tanta humanidade, tanta esperança, felicidade, solidariedade. Vale a pena. Vale verdadeiramente a pena.

Já andei no mundo dos blogs e acabei por me esfumar, mas achei que estava na altura de voltar. Achei que devia partilhar a minha voz e a minha experiência com quem as quiser. E quem sabe encontrar pessoas que sentem da mesma forma esta ambiguidade naquilo que fazem, seja na causa animal ou noutro contexto qualquer.

Todos os dias me recuso a fechar os olhos, por mais que seja doloroso mantê-los abertos. Depois de ver, já não é possível deixar de ver, ainda que os olhos cegassem. E vejo coisas horríveis sim. E coisas maravilhosas também.

Demorei muitos anos a decidir ouvir-me e a encontrar-me, mas agora não esqueço quem sou.



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